Câmeras de Segurança
Todo cidadão brasileiro, ao pegar um veículo, por meio de aplicativos como Uber e 99, estarão provavelmente sujeitos a terem suas imagens e vozes gravadas através do próprio aplicativo e/ou mediante a câmeras de segurança. Ao redor do mundo, estas câmeras são conhecidas como dash cams, por aqui no Brasil, são conhecidas por câmeras de vídeo ou até mesmo como câmeras de segurança. Mas, onde realmente estas câmeras se encontram aos olhos da lei? Podemos começar este artigo, compartilhando que, de fato, não é necessária nenhuma permissão especial para usá-las. Basta que o motorista conecte a sua câmera de bordo e pronto. Mas, será que isso é tudo ou há algumas considerações que estes motoristas e as empresas deveriam se preocupar?
Os principais argumentos para a sua adoção são: segurança do passageiro, segurança do motorista, para a produção de provas em caso de incidentes, acidentes ou de litígios, ou seja, trata-se de produção antecipada de provas.
Contudo, estas empresas podem estar criticamente infringindo a LGPD ao incentivarem os seus motoristas com ofertas repletas de descontos para a aquisição destes dispositivos e recorrerem consequentemente a suas câmeras para coleta de imagens e áudios a bordo. Aqui, não entraremos no mérito das relações trabalhistas entre empresas de aplicativos e seus colaboradores.
Possíveis comportamentos dos motoristas
É oportuno considerar que, hoje em dia, temos os seguintes tipos de motoristas de aplicativos:
- Os que não gravam imagens, nem áudios;
- Os que gravam apenas áudios através dos aplicativos destas empresas;
- Os que gravam áudios e vídeos através dos aplicativos destas empresas;
- Os que gravam áudios e vídeos através dos aplicativos e das câmeras de segurança;
- Os que gravam áudios e vídeos através das câmeras de segurança.
Contudo, é pertinente compartilhar que os motoristas que fazem gravações se dividem em três grupos:
- Os que conectam as câmeras apenas nos respectivos aplicativos das empresas que prestam serviços;
- Os que conectam as câmeras nos respectivos aplicativos das empresas que prestam serviços e também gravam (audio e vídeo) em cartões de memória próprios, ou seja, de cunho pessoal;
- Os que não conectam as câmeras nos respectivos aplicativos das empresas que prestam serviços, mas gravam (audio e vídeo) em cartões de memória próprios.
Hipóteses Legais de Tratamento
Aqui, cabe um parêntese. Ao fazerem uso de câmeras de segurança, mesmo as indicadas pela própria Uber ou 99, não é garantia de que este dispositivo esteja conectado aos sistemas dessas empresas. Entretanto, ao conectar a tais sistemas, isso garante que a qualquer momento estas empresas possam acessar as imagens e áudios no interior do veículo. E de maneira sumária, caso não concordem com algo, podem descadastrar tais motoristas. Devido ao exposto, há casos de motoristas que optam por não conectar a estes sistemas, conforme já compartilhado, e estão gravando estas imagens em cartões de memória pessoais.
Bem, uma coisa é a empresa, como controlador, compartilhar os dados de um passageiro com o motorista, neste caso operador, a fim de garantir a prestação do serviço. Outra coisa, é o motorista, de maneira unilateral, decidir gravar imagens e áudios de passageiros em seus dispositivos pessoais. Com esta decisão, eles saem da figura de operador, para se equipararem à figura de controlador, com seus ônus e bônus.
É inevitável que alguns questionamentos surjam, como, por exemplo, os citaos a seguir:
- Qual hipótese legal garante as empresas e motoristas a realizarem tais tratamentos de dados pessoais, às vezes, até mesmo de dados pessoais sensíveis?
- O que falar de dados das pessoais das pessoas que os passageiros estão falando através de ligação telefônica ou WhatsApp? Ou seja, dados pessoais de terceiros, que naquele momento não estão tendo nenhuma relação comercial com motorista e empresa?
- Novamente, qual hipótese legal garantia empresas e motoristas a realizarem tais tratamentos de dados pessoais, às vezes, até mesmo dados pessoais sensíveis?
- Será que informar em uma política que a sua imagem e voz podem ser gravadas é o suficiente?
Imagine a seguinte situação, você entra em um veículo de aplicativo, sente-se confortável, a princípio, considera a descrição do motorista, e desanda a falar em uma ligação de voz ou por meio de áudios do WhatsApp, no viva-voz. Entretanto, além de você e do motorista, tudo o que conversou foi gravado e está em uma plataforma que você não sabe qual é, não sabe se seus dados estão no Brasil, no exterior ou em ambos e quem terá acesso a esta gravação. O que falar sobre privacidade? Sobre a sua privacidade e, caso esteja no viva voz, como no exemplo citado, sobre a privacidade da pessoa que você estava se comunicando. Uma coisa é certa, em um geral, nenhuma das partes teria expectativa alguma de que isso ocorresse. A final, você contratou um serviço de transporte, mas não um de monitoramento, certo?
A situação hipotética descrita acima já é parte integrante da realidade de muitos brasileiros. E através deste artigo, fica aqui o convite para a reflexão. Se alguém que usa este veículo não estiver ciente ou mesmo ciente, não concordar de que está sendo gravado, isso pode gerar um imenso desconforto sobre os pilares da privacidade. Tal adoção poderá acarretar o desencadeamento de consequências legais, potencialmente severas, especialmente se as filmagens forem tratadas sem nenhuma hipótese de tratamento.
Sobre o “consentimento” dos passageiros
A Uber, em nota, afirma que os regulamentos locais podem exigir que os indivíduos que usarem equipamentos de filmagem nos veículos avisem aos passageiros que eles estão sendo filmados dentro ou ao redor do veículo, e que obtenham o consentimento deles para fazer isso. E indicam a consulta a legislação da sua cidade para saber se é esse o caso. Pessoalmente, eu nunca fui perguntado se daria consentimento para que a gravação ocorresse. E você, já foi? O que parece aqui é que a Uber está passando a responsabilidade da segurança jurídica para o motorista, sem compartilhar a fragilidade disso. Será que os motoristas, num geral, conhecem a LGPD profundamente, a ponto de entenderem os riscos que estão correndo?
Um pouco mais os recursos de gravação de vídeo e áudio
O ano era 2020 e pouco se falava sobre privacidade e proteção de dados, no Brasil, quando a Uber lançou o recurso de gravação de áudio de viagens aqui no país, batizado de U-Áudio.
Segundo a empresa, a gravação resultará em 1 arquivo que poderá ser usado para reportar algum problema na viagem. A intenção é diminuir casos de abusos, assédios e ameaças dentro dos carros que prestam serviço à Uber. O áudio criado, contudo, é criptografado. Nem usuários, nem motoristas podem ouvi-lo após gravado. Ele fica disponível apenas se for incluído em alguma reclamação feita por algum dos lados. Mesmo assim, apenas a Uber pode acessar o conteúdo do arquivo.
Segundo a Uber, o projeto de utilização do recurso de gravação de vídeo está em andamento desde outubro de 2022 e tem se expandido por várias cidades do país. Em 16 de abril, a empresa anunciou que o projeto segue em expansão. Quantos dados pessoais e até mesmo dados pessoais sensíveis estão sendo diariamente coletados Brasil a fora?
A Uber frisa que trata-se de um recurso de segurança. Mas, e a privacidade? Em nota, a empresa compartilhou o seguinte:
Eu confesso que desconhecia esse papel da Uber, de educação de parte da Sociedade Brasileira, ou seja, dos cidadãos que fazem uso de seus serviços, através de monitoramento em massa.
De acordo com a Uber, o recurso de gravação de vídeo funciona assim:
- Ativação: A gravação é opcional e utiliza a câmera frontal do smartphone. Uma vez habilitado o recurso, os motoristas parceiros poderão gravar vídeo e áudio de todas as viagens.
- Tempo de gravação: O registro de áudio e vídeo começa ao se aproximar do ponto de embarque e continua pela viagem, parando 20 segundos depois que a viagem for encerrada – isso porque algumas situações podem ocorrer no momento do desembarque.
- Privacidade: Assim como já ocorre no recurso de gravação de áudio, o U-Áudio, a gravação de vídeo e áudio também permanece criptografada no celular, sem que ninguém possa acessá-la diretamente – nem a Uber e nem o próprio motorista, que não possui a chave da criptografia. O usuário, por sua vez, é informado que sua viagem será gravada antes de embarcar, tendo liberdade para cancelar a viagem e solicitar outro carro, se preferir.
- Análise de incidentes: A única forma da equipe de atendimento da Uber acessar o conteúdo das gravações é através de um reporte de incidente de segurança no aplicativo. Se o motorista parceiro abrir uma reclamação, ele terá a opção de adicionar o arquivo com o vídeo em questão. Só então a Uber – que tem a chave da criptografia – terá acesso aos registros. A gravação permanece disponível no dispositivo do parceiro pelo período de sete dias após a viagem, sendo automaticamente apagada após esse período se nenhum reporte de incidente atrelado a ela for realizado.
- Investigações: As autoridades competentes também podem solicitar acesso a essas imagens compartilhadas pelos parceiros com a Uber, na forma da lei.
A gravação de áudio também é oferecida aos passageiros. Mas, como será que os motoristas se sentem ao falarem com seus familiares, amigos etc, sabendo que os passageiros podem estar gravando-os?
Exemplo pelo mundo
Algumas Data Protection Authorities (DPAs)1, ou em tradução livre, Autoridades de Proteção de Dados já estão se manifestando sobre o tema, com destaque para o Information Commissioner’s Office (ICO). Em um artigo sobre a matéria, o ICO destacou que essas câmeras geralmente estão funcionando quando o carro está em uso, seja para negócios de táxi ou não. Se o motorista de táxi estiver fazendo uma tarefa pessoal, geralmente, a câmera ainda está gravando, e o ICO afirma que isso é uma invasão de privacidade.
O mesmo se aplica a câmeras de ré, câmeras internas e câmeras de painel (dashcams) usadas para fins comerciais.
No Reino Unido, em fevereiro de 2024, três motoristas foram condenados com base nas filmagens de suas próprias câmeras de bordo, que mostravam que estavam alcançando velocidades superiores a 160 km/h.
Conclusão
Enquanto boa parte da população, sem saber abre mão da sua privacidade, empresas como a Uber, fazem o que querem, em prol da “segurança”. Como sociedade, precisamos estar atentos a nossa privacidade. Como profissional atuante na proteção de dados, cabe o alerta e a discussão. Se você também está indignado, compartilhe.
Algumas referências
- UBER. Aviso de Privacidade. Disponível em: https://www.uber.com/legal/pt-br/document/?country=brazil&lang=pt-br&name=privacy-notice. Acesso em: 21 ago 2024.
- UBER. Gravação de áudio. Disponível em: https://www.uber.com/br/pt-br/safety/audiorecording. Acesso em: 21 ago 2024.
- UBER. Posso usar uma câmera de vídeo? Disponível em: https://help.uber.com/driving-and-delivering/article/posso-usar-uma-c%C3%A2mera-de-v%C3%ADdeo-?nodeId=31871392-e500-41fe-a667-2956d72d8e0f. Acesso em: 21 ago 2024.
- UBER. Ride safe with a dashcam from Otto Car. Disponível em: https://www.uber.com/en-GB/blog/london/ottodashcampartnership. Acesso em: 21 ago 2024.
- UBER. Uber expande recurso de gravação de vídeo para motoristas parceiros em todo Brasil. Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/uber-expande-recurso-de-gravacao-de-video-para-motoristas-parceiros-em-todo-brasil. Acesso em: 21 ago 2024.
- Poder 360. Uber lança recurso para gravar áudio de viagens no Brasil. Disponível em: https://www.poder360.com.br/brasil/uber-lanca-recurso-para-gravar-audio-de-viagens-no-brasil. Acesso em: 21 ago 2024.
Notas de Rodapé
- DPA: são autoridades públicas independentes que monitoram e supervisionam, por meio de poderes investigativos e corretivos, a aplicação das leis de proteção de dados. Elas fornecem aconselhamento especializado sobre questões de proteção de dados e lidam com reclamações que possam ter violado a lei. Aqui no Brasil, nossa DPA é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). ↩︎